«Santo Agostinho definiu a paz como “a tranquilidade da ordem”, tornando, assim, claro que é necessário haver ordem para poder existir paz.
A ordem, por sua vez, é simultaneamente fruto da inteligência e a primeira lei da inteligência. Onde vemos ordem, podemos ter a certeza de que aí está a inteligência.
Mas, o preço a pagar pela ordem é alto. Esse preço chama-se sujeição. Ou seja, para poder existir ordem tem de haver submissão.
A ordem do universo resulta de leis físicas que estabelecem relações de sujeição entre as criaturas, umas servindo as outras.
Na ordem humana essa sujeição só pode ser de natureza moral; isto é, sujeição a uma força moral que deixe livre o domínio do homem sobre a ordem física.
Se a sujeição do homem for de ordem física, trata-se de tirania. Esta, pode até acabar com todos os conflitos numa sociedade dando a ilusão de paz, mas nunca será uma sujeição correctamente ordenada.
Por outras palavras, a verdadeira sujeição significa que todas as coisas estão no seu lugar. E, quando tudo está no seu lugar, existe paz, progresso, estabilidade - a ordem porque toda a natureza anseia - ou seja, temos a perfeição.
Os anjos sujeitos à Lei divina, contrastam tão vivamente com os anjos rebeldes, como o homem justo contrasta com o assassino ou o cidadão pacífico com o anarquista.
Em todos estes casos
o mais perfeito é o mais submisso.
Tudo tem o seu lugar na harmonia do universo - o lugar
certo. Esse lugar é sempre superior a uns e inferior a outros lugares.
Mas, hoje, no que à ordem humana diz respeito, tende-se a não aceitar esta verdade óbvia e a crer que o homem é o mestre dos mestres, sem ninguém que lhe seja superior e nada que não lhe seja inferior. Este retracto é obviamente falso e encerra toda a fealdade dum mundo distorcido e caótico.
A razão desta mentira, no entanto, é fácil de entender dada a natureza humana; o homem tem tendência para confundir sujeição com tirania e degradação; e gosta de se julgar auto-suficiente.
Sendo assim, não é, pois, de admirar que a nossa época olhe para a virtude da religião, que é essencialmente uma virtude de sujeição, como algo de detestável ou no mínimo sem importância e totalmente subjectivo.
Mas, a religião, que mais não é que um acto de sujeição a Deus, longe de ser uma falta de respeito por nós próprios é uma forma de fortalecer esse respeito. Não é algo de subjectivo ou uma questão de gosto, nem um favor que fazemos a Deus. É um acto de reconhecimento duma verdade evidente; é um acto de estrita justiça, que dá a Deus o que Lhe pertence e recusa tirar a Deus o que é dEle; de tal forma é assim que a violação ou a negligência da virtude de religião traz com ela todos os efeitos caóticos do vício anti-social da injustiça.
A religião vê Deus como o primeiro e derradeiro princípio do Homem, como a fonte de tudo que ele é e o fim de todos os seus desejos e acções. Ela dá o tributo de respeito e submissão à infinita perfeição da Primeira Causa, ao infinito bem do Fim Último.
O homem tem de ter um princípio e tem de ter um fim; fim e princípio, que lhe são muito superiores. A religião é, assim, um tributo à verdade das coisas, tal como elas são - à estrutura da realidade. E, é também uma questão de justiça; trata-se de dar a Deus aquilo que Lhe é devido, como primeira e última causa de todas as coisas.
A beleza e solemnidade das cerimónias religiosas mais não são que os ornamentos com que o homem reveste a honra e o respeito que Deus merece.
O objecto da religião não é o próprio Deus, mas a dívida que temos para com Ele, por isso não se trata duma virtude teologal, mas uma virtude moral; tem a ver com o pagamento duma dívida por meio de acções realizadas pelo homem; é a virtude que aperfeiçoa a vontade do homem por forma a que possa dar a Deus o que Lhe é devido. Por outras palavras é um acto de justiça; e é, sem dúvida, a mais alta das virtudes morais pois é, de todas, aquela que mais aproxima o homem do que é melhor para ele nesta vida – o seu fim último.
Através da religião, por um lado reverenciamos a excelência de Deus e, por outro, manisfestamos-Lhe a nossa sujeição como Suas criaturas, que somos.
Não podemos adorar a Deus sem Lhe estarmos sujeitos sob pena de tornar essa mesma adoração inútil.
Isto significa que não podemos adorar a Deus sem nos
aperfeiçoarmos e para nos aperfeiçoarmos temos de nos sujeitar a Ele. A
sujeição que a religião implica é a sujeição áquEle que nos é superior, colocando-nos no lugar que nos pertence na ordem do universo.
É uma regra universal que o homem atinge a perfeição, não pelo contacto com os seus inferiores, mas pela sujeição aos que lhe são superiores. E, nesse sentido, a religião está tão ordenada à adoração de Deus como ao aperfeiçoamento do homem, porque cada acto de religião sujeita o homem áquEle a quem deve submissão.
Deus é todo glorioso, nada Lhe podemos dar; os actos de adoração e submissão que Lhe votamos, são somente em nosso benefício e em ordem a podermos atingir a perfeição pois, um homem não pode aplicar os seus pensamentos em Deus, sem partilhar, de alguma forma, da sua perfeição.
A religião é uma humilde criada, atarefada com os seus afazeres domésticos na casa do Senhor do universo, procurando constantemente dar-Lhe o serviço que Ele merece.
A santidade, por sua vez, significa que essa sujeição é total e ultrapassa o mero serviço - uma sujeição que só pode ser ditada pelo amor.
A santidade, ou seja, a perfeição do homem, é directamente
proporcional à sua submissão a Deus.
Pelo contrário, a irreligião coloca o homem num lugar errado do universo; num lugar que não é o seu. Quando tal acontece, instantaneamente a harmonia do universo e da própria vida humana são corrompidas por uma nota árida e insípida — a nota da desordem.
Por causa da irreligião as ricas possibilidades da vida humana são pervertidas, atrofiadas ou mesmo destruídas. Mesmo o solo mais rico não pode suportar tamanho abuso. Os desertos mais áridos dão uma pálida imagem do abandono e exangue esterilidade que alastram, hoje, nos corações humanos.
O coração do homem não pode estar cheio, não pode tender para perfeição, se não estiver sujeito ao que lhe é superior - ao princípio e fim de todas as coisas; e, pode ficar totalmente degradado e vazio se, ao invés, estiver sujeito a algo que lhe é inferior.
E, essa é precisamente a obra da irreligião - libertar o homem da sujeição a Deus para o entregar à degradação e à tirania.
Por mais paradoxal que possa parecer, continua a ser verdade que o homem é perfeito na exata proporção da sua sujeição aos que lhe são superiores, e sobretudo à sujeição dada ao Ser Supremo, causa primeira e fim último de todas as criaturas.
Essa verdade está tão profundamente impregnada no coração do homem que, por mais que ele rejeite Deus, ainda assim insistirá em se submeter a algo ou a alguém, por força dessa inata percepção de que somente na sujeição ele pode chegar à perfeição.
A religião, como vimos, é uma estrita questão de justiça; ela apenas dá a Deus o que Lhe é devido. E não podemos dar nada a Deus sem nos aperfeiçoarmos. Existem dois lados na moeda da religião: de um lado a adoração a Deus; do outro, o aperfeiçoamento do homem. Os dois são inseparáveis. À medida que a adoração a Deus é negligenciada, a perfeição do homem decai; e, na medida em que o homem se aperfeiçoa, deve também aperfeiçoar a adoração a Deus.
Não há outra receita para a perfeição senão a da submissão, pois é eterna a verdade evangélica que nos diz que "quem perder a vida salvá-la-á, e quem salvar a vida perdê-la-á".
Somente entregando totalmente a vida a Deus, ela se tornará verdadeiramente nossa.
Walter Farrell, A Companion to The Summa, volume III, capítulo X, pags. 142 a 172.
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