O Tempo Invertido


Ligo a TV e vejo uma socióloga, Maria Lúcia de Oliveira, ensinando a um grupo de atentas universitárias, sob o patrocínio do governo, que a associação do masculino com o activo e do feminino com o passivo foi um ardil machista concebido por um poder político para impor a sujeição às pobres mulheres.

Essas associações simbólicas, diz ela, disseminam-se pela repetição geral até se tornarem forças sociais inconscientes. Impregnadas no vocabulário, modelam e dirigem a vida psíquica das multidões, como botões de comando invisíveis, internalizados pela astúcia do poder.

Ela afirma-o como se fosse a verdade científica mais certa e provada, e as alunas recebem a mensagem como se fosse a luz da razão que vem libertá-las, enfim, das trevas antigas do preconceito e da ignorância.

O esquema repete-se, diariamente, numa infinidade de salas de aula, programas de rádio e TV, conferências, revistas, jornais e, evidentemente, livros.

A orgulhosa convicção de estar a desenvolver uma visão mais realista das coisas, fundada nos progressos da educação, espalha-se assim em milhões de almas que, por isso, se sentem libertas do obscurantismo das “gerações passadas” - uma unidade de medida que abrange numa pasta uniforme, remontando na linha do tempo, desde o papai e a mamãe até ao homem de Neanderthal.

No entanto a lição aí absorvida é de uma estupidez descomunal  e só pode ser aceite por inteligências deficientes, incapazes das mais elementares perguntas críticas.

A associação masculino-activo, feminino-passivo, aparece em tantas culturas antigas, tão separadas no tempo e no espaço como a hindu, a chinesa, a persa e a ameríndia, que a possibilidade de que não constitua a tradução simbólica espontânea de uma constante da experiência humana, e sim a invenção artificiosa de algum “poder político”, repousa inteiramente sobre a hipótese pueril de que na altura existisse uma casta governante mundial, capaz de impor os seus decretos e a sua linguagem aos quatro quadrantes da Terra.

A hipótese é tão idiota que não merece consideração, mas platéias inteiras de estudantes aceitam-na porque são incapazes de remontar da idéia à premissa imediata que a sustenta.

Significativamente, um poder mundial tal como o subentendido nessa premissa é algo que só muito recentemente pôde ter existência, graças à rede mundial de telecomunicações.

A invenção do telégrafo foi a primeira conquista rudimentar que inaugurou a expansão do poder numa escala que ultrapassaria as mais delirantes ambições de Júlio César ou de Gengis-Khan.

Até o século XVIII, qualquer ordem emanada de um governante podia levar semanas ou meses para chegar às últimas fronteiras do território sob seu comando. Todo poder, mesmo o mais organizado e eficiente, era diluído pelas distâncias e pelas dificuldades de comunicação.

A idéia, por exemplo, de uma Igreja monolítica, de uma rede clerical global sob as ordens de Roma, e que só teria começado a desfazer-se com o advento da ciência e das Luzes, é um mito que a imaginação moderna projecta sobre o passado, recriando-o à sua própria imagem e semelhança. Até à Renascença, os papas não conseguiam sequer nomear seus bispos, uma prerrogativa que só muito dificilmente foram arrancando de uma multiplicidade de poderes locais independentes.

 A própria ideia de um controlo global unificado não começa a desenhar-se na imaginação humana senão com Kant, no começo do século XIX; nem se traduz em projeto sistemático antes de Cecil Rhodes, na passagem do XIX para o XX; nem se traduz em iniciativas concretas antes do advento do Comintern, da Fabian Society e principalmente da ONU. 

Não por coincidência, a reinvenção do passado histórico segundo os cânones fantasiosos da socióloga da TV, com todo o complexo de emoções e símbolos de protesto feminista associados, só se disseminou, justamente, numa época em que, pela primeira vez na história, um poder político, jurídico e educacional se constituiu à escala planetária e hoje impõe as suas crenças e valores a toda a população mundial, através de campanhas publicitárias e programas educacionais passivamente aceites por todos os governos nacionais que, em caso de rebeldia, se veriam imediatamente excluídos do crédito bancário das grandes instituições financeiras internacionais, sem o qual não sobreviveriam uma semana.

A nova linguagem da rebeldia feminista, do protesto gay, das quotas raciais, do ecologismo, do abortismo, etc., é produto de intelectuais activistas, engenheiros sociais e planeadores estratégicos directamente ligados, quer ao núcleo do novo governo global, quer à sua rede informal de agências espalhadas pelo mundo sob a forma de ONGs, quer à grande mídia internacional que se tornou uma caixa de ressonância da novilíngua “politicamente correcta”.

Milhões de porta-vozes em milhares de TVs pelo mundo fora treinam diariamente exércitos de semi-intelectuais para que repassem à população aqueles novos padrões de linguagem que, ao moldar a imaginação e os sentimentos das multidões, ainda farão o prodígio de ocultar a existência da respectiva fonte, levando-as a acreditar que tamanho poder sobre as consciências não existe hoje e não está sendo exercido sobre elas naquele preciso instante, mas existiu num passado remoto, mas que dele nos libertámos pelo advento da gloriosa modernidade.

 É a inversão geral da consciência de tempo histórico, base para a construção imaginária de um mundo às avessas.

 

É alucinante, mas é precisamente assim.

Olavo de Carvalho

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