Espírito e personalidade

                                                  OLAVO DE CARVALHO

                        

Diário do Comércio, 31 de janeiro de 2013

O espírito chega até nós somente através do pensamento, mas o pensamento, por si só, não o pode nem criar nem alcançar; o espírito é a verdade do pensado, verdade essa que, por definição, está para além do pensamento, mesmo quando este cria o seu próprio objecto.

Quando, por exemplo, criamos mentalmente um triângulo, este já traz em si todas as suas propriedades geométricas que o pensamento, nesse instante, ainda ignora por completo; e quando, através do pensamento, as tivermos descoberto uma a uma, ao longo do tempo, teremos de confessar que elas já estavam no triângulo mesmo antes que as apreendêssemos; e, mesmo quando apreendemos uma só dessas propriedades geométricas, apreendemos algo que já estava no triângulo e antes de estar no nosso pensamento.

Não há, na esfera do mental, nenhuma diferença entre pensar o falso e pensar o verdadeiro. O pensamento só se torna veraz quando toca algo que está para além dele, algo que não se reduz de maneira alguma ao acto de pensar e nem ao pensamento pensado. Esse algo é o que chamamos verdade.

 Como se vê no exemplo do triângulo, a verdade está para além do pensamento, até mesmo quando o objecto do pensamento é criado por ele próprio; ou seja o pensamento não domina e não cria a veracidade nem mesmo dos objetos puramente pensados.

A verdade só aparece para além de uma fronteira que o pensamento enxerga mas não transpõe. A verdade é o reino do espírito. A verdade é espírito, mesmo quando apreendida num objeto material.

Os nossos sentidos podem apreender a presença de um objecto, mas não podem, por si,decidir se essa presença é real ou imaginária. O pensamento tem de intervir, colocando perguntas que completem e corrijam a mera impressão. Ele fá-lo em busca da verdade do objecto, mas, quando chega a tocar nela, sabe que ela está não apenas para além dos sentidos, mas para além do próprio pensamento, caso contrário não seria verdade de maneira alguma mas sim apenas uma impressão modificada pelo pensamento.

A verdade é sempre transcendente à esfera do pensamento, das sensações, das emoções, de tudo quanto constitui o mental.

 Os testes de QI só medem a quantidade da actividade mental, mas não a sua eficiência em se transcender apreendendo a veracidade do objecto, isto é, a sua capacidade de vislumbrar, para além da esfera do pensado, o reino do espírito.

A essa capacidade não se chama pensamento, mas inteligência. Ela é inteiramente alheia à quantidade, intensidade ou elegância formal do pensamento. A pensar, morreu um burro, diz o ditado. Pensar falsidades dá tanto trabalho, e às vezes até mais, do que chegar à verdade. O pensamento bom não é aquele que se compraz na riqueza dos seus próprios movimentos, mas aquele que se recolhe humildemente para dar passagem à inteligência, à percepção da verdade.

A correcção formal do pensamento pode ser importante, às vezes, mas o pensamento, por si, não tem como apreender sequer a verdade da sua própria correcção formal. Tomar consciência da correcção formal de um silogismo não é um pensamento: é a percepção instantânea — intuitiva, se quiserem — de um nexo necessário entre dois pensamentos. Se não fosse assim, seria apenas um terceiro pensamento, cujo nexo com os outros dois teria por sua vez de ser provado silogisticamente, e assim por diante até à consumação dos séculos.

 Portanto, até mesmo a mera veracidade formal é veracidade, e transcende o pensamento.

Pessoas que pensam muito são, só por esse motivo,  chamadas de intelectuais, mas isso é errado: a vida do intelecto só começa na fronteira em que o pensamento se apaga para dar lugar ao vislumbre da verdade.

Tanto o pensamento como as impressões, a memória ou as emoções não fazem mais que acumular motivos para que a verdade surja, depois, numa percepção instantânea. Essa acumulação pode ser longa e trabalhosa, mas não é nunca a finalidade, a meta de si própria.

Toda educação da inteligência deveria ter essas obviedades em conta, mas tal tornou-se quase impossível numa época que virou as costas à própria noção de verdade — para não falar de espírito —, substituindo-a pela de projecção subjetiva, adequação, utilidade, interesse de classe, criação cultural etc., como se todas estas noções não afirmassem implicitamente a sua própria veracidade e não restaurassem assim, meio às tontas, aquilo que desejariam suprimir.

No curso da sua evolução temporal, o indivíduo chega a ter uma personalidade intelectual  quando a submissão do seu pensamento ao espírito se tornou um hábito adquirido e se integrou na sua alma como reacção usual e quase inconsciente.

Em sentido estricto, conduzir o estudante a essa passagem de nível seria o objectivo de toda educação superior, mas a redução das universidades à condição de escolas profissionais ou de centros de adestramento ideológico para militantes veio a tornar esse objectivo inteiramente utópico, elitizando, em vez de democratizar, o acesso aos bens superiores do espírito como prometem fazer todos os governos do mundo.

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