Eutanásia:
do direito a morrer à obrigação de morrer
Vamos pensar um pouco sobre o chamado “direito a
morrer”. Muitas pessoas parecem estar de acordo com o estabelecimento desse
direito, por respeito à liberdade individual ou por compaixão pelo sofrimento
alheio. Mas, deixariam de estar se se apercebessem do preço a pagar pelas
obrigações que esse direito implica.
Adquirir um direito alienável a morrer é, de facto,
renunciar a um direito alienável a viver.
Vejamos como:
Se a lei estabelece um direito, seja ele qual for,
estabelece também três obrigações, sem as quais esse direito seria vazio e
inexistente:
1. A obrigação de não se opor ao exercício desse
direito;
2. A obrigação de fornecer os meios para que ele
possa ser exercido, sem os quais o direito permaneceria completamente teórico;
3. A obrigação de aceitar sofrer os efeitos
resultantes do exercício desse direito.
( Demos, por agora, de barato o
aumento de burocracia, de regulamentação, de controlo e de poder estatal que, o
assegurar dum só destes direitos, implica).
Aplicação: O direito de X a se suicidar implica três obrigações para os outros, considerados coletivamente: a primeira é não impedir X de se suicidar; a segunda é ajudá-lo a fazê-lo, se ele não tiver os meios para o fazer sozinho. Estas duas primeiras obrigações são óbvias.
Mas, qual será a terceira?
É, a obrigação de se suicidar, em determinadas
circunstâncias.
Nada mais nada menos.
E, isso pode ser demonstrado.
Para que a lei conceda um direito e imponha as
obrigações correspondentes, é necessário que o Estado - ou as elites, ou a
maioria - julgue que o objecto do direito, o propósito da acção autorizada
(neste caso, matar-se), não é imoral. Não é imaginável, por exemplo, que o
Estado possa alguma vez estabelecer um direito a fugir aos impostos, a provocar
incêndios ou a corromper crianças (quer se dizer, pensando bem,…). Podemos concluir, portanto, da
concessão desse direito, na pior das hipóteses, que o objecto do direito, se não
é bom, é pelo menos desculpável e tolerável; e na melhor das hipóteses, que não
há nada de errado com ele e que deve ser considerado perfeitamente moral. A
algumas pessoas será, sem dúvida, concedido o direito de pensar o contrário e
de o dizer, desde que não perturbem o gozo do direito.
Por outras palavras: ao estabelecer um direito, o
Estado não se limita a dar uma ordem - está a validar em nome de todos, apesar da
discordância de muitos, um juízo de valor de natureza moral. Gera-se assim uma
situação a que se poderia chamar de “pescadinha-de-rabo-na-boca” pois, em
geral, a legalização de uma prática contribui para a generalização progressiva
da crença na sua moralidade relativa ou absoluta; e vindo o povo a partilhar o
juízo que afirma, ou admite, a moralidade da eutanásia, apoiará depois as acções
do legislador nesse sentido.
Mas, é aqui que surge a dificuldade. Com efeito, se um tipo de acto é considerado moral, pelo menos em certas circunstâncias, podemos, não só, ter direito a ele, como nada impede que, esse direito, se torne, noutras circunstâncias, um dever.
Se alguém me apresentar uma única excepção
histórica na qual isto não se tenha verificado, retirarei esta última
afirmação.
Não poderia, pois, ser o direito a morrer, uma
excepção a esta regra?
Pois bem, não!
A experiência diz claramente o contrário. Por
exemplo, entre os esquimós Inuit, um ancião, quando considerava ser demasiado
inútil, saía do iglu para morrer lentamente ao frio. Provavelmente por pensar ser
esse o seu dever. No outro lado do mundo, na tropical Polinésia, outros
anciãos, ou até mesmo jovens supranumerários, partiam voluntariamente numa
piroga e nunca mais voltavam. Faziam-no por culturalmente acreditarem não ser, o
acto de se matarem, imoral e, portanto, poder, esse acto, ser um dever em determinadas
situações. Caso contrário, teriam agido de forma diferente.
Ora, quando uma pessoa tem (por hipótese), o dever
de se matar, como reagia o grupo (nas sociedades primitivas) ou o que fará o
Estado (nas sociedades modernas) se essa pessoa se recusar a cumprir esse seu
dever, quando o “interesse público”, legal e constitucionalmente estabelecido, o exigir?
A resposta é tristemente óbvia. Ela será forçada a
fazê-lo.
E para os que consideram, esta, uma hipótese
absurda, recorde-se os casos vindos a público, no Reino Unido e no Canadá, de
pressão, exercida pelas autoridades, sobre pessoas deprimidas, insolventes, junkies irrecuperáveis
ou idosos que já esgotaram os recursos económicos necessários para pagar os
cuidados das instituições que os acolheram, para que optem pela eutanásia.
Se estabelecemos um direito ao suicídio, estamos a
admitir a moralidade de tal prática e, como tal, a abrir as portas à possibilidade
de vir a ser criada uma obrigação ao suicídio, sob certas condições.
A assistência necessária para que o cidadão
recalcitrante cumpra essa obrigação, pode muito bem vir a assumir a forma
soft, liberal e democrática dum constrangimentos do tipo do defendido pelo
humanista, democrata e liberal Rousseau, quando dizia que "alguém terá de
o forçar a ser livre".
Sem eufemismos: só podemos adquirir o direito de nos darmos a morte, reconhecendo
ao Estado o direito de no-la dar.
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