"Inteligência,
no sentido em que aqui emprego a palavra, no sentido que tem etimologicamente e
no sentido em que se usava no tempo em que as palavras tinham sentido, não quer
dizer a habilidade de resolver problemas, a habilidade matemática, a imaginação
visual, a aptidão musical, a memória ou qualquer outro tipo de habilidade em
especial. Inteligência é a capacidade de apreender a verdade.
A inteligência não consiste em pensar. O pensar e o inteligir são actividades completamente distintas. A prova disto é que muitas vezes pensamos, pensamos e não inteligimos nada, e outras vezes inteligimos sem termos pensado, numa súbita fulguração intuitiva. Aliás, se é através do raciocínio que às vezes inteligimos, também é através dele que nos enganamos.
Se definimos a inteligência como a capacidade humana de captar o que é verdade, então, o essencial do ser humano, aquilo que o diferencia dos animais, não é o pensamento, não é a razão, nem uma imaginação ou memória excepcionalmente desenvolvidas. O que nos torna humanos é o facto de tudo aquilo que imaginamos, raciocinamos e recordamos, sermos capazes de o ver como um conjunto e, com relação a esse conjunto, podermos dizer um sim ou um não; podermos dizer: “É verdadeiro”, ou: “É falso”; sermos capazes de julgar a veracidade ou falsidade de tudo aquilo que a nossa própria mente vai conhecendo ou produzindo, e isto não há animal que possa fazer.
Portanto, o
exercício da inteligência tem necessariamente um lado ético e moral.
Se houvesse
um ensinamento voltado para o desenvolvimento da inteligência, ele teria de,
antes de mais, acostumar o aluno a desejar a verdade em todas as circunstâncias
e a não fugir dela.
Platão dizia: “Verdade conhecida é verdade obedecida.”
Se a inteligência fosse uma faculdade puramente cognitiva, nada impediria que ela fosse exercida igualmente bem pêlos bons e pêlos maus, pêlos sinceros e pêlos fingidos, pêlos honestos e pêlos safados.
Mas, as coisas não se passam assim, e a desonestidade interior produz necessariamente o enfraquecimento da inteligência, que acaba por ser substituída por uma espécie de astúcia e de maldade engenhosa - sendo que a astúcia, aqui, não consiste em captar a verdade, mas em captar — sem dúvida com veracidade — qual a mentira mais conveniente em cada ocasião.
A conexão entre a inteligência e o bem sempre foi reconhecida por todos os grandes filósofos do passado, do mesmo modo que a correspondente ligação, do lado do objecto, entre a verdade e o bem.
Um mundo que nega essa conexão, que faz da inteligência uma faculdade “neutra”, capaz de funcionar tão bem nos bons e nos maus como a respiração ou a digestão, é um mundo francamente mau, que se orgulha da sua maldade.
Mauriac notava: "nos seres decaídos, essa destreza para embelezar a sua decadência, é a derradeira enfermidade a que o homem pode chegar: quando a sua sujidade o deslumbra como um diamante”.
A partir do momento em que eu admito que uma coisa é verdadeira, mas procedo, mesmo que em segredo, mesmo que interiormente, como se ela não o fosse, estou mantendo um discurso duplo: num plano afirmo uma coisa, e noutro afirmo outra.
A verdade tem poucas oportunidades de nos surgir com toda a clareza, e a mente humana funciona de tal forma que, quando nega uma determinada informação, o subconsciente suprime todas as informações análogas, de modo que, quando digo para mim mesmo uma determinada mentira que me é conveniente, por motivos práticos ou psicológicos, ou para me preservar de sentimentos desagradáveis, no mesmo instante em que suprimo esta informação, suprimo uma série de outras que me seriam úteis e que não tencionava suprimir.
Por isto a mentira interior é sempre danosa para a inteligência: é um escotoma que se alastra até escurecer todo o campo da visão, substituindo-o por um sistema completo de erros e mentiras.
Quando nos habituamos a suprimir a verdade com relação às nossas memórias, à nossa imaginação, aos nossos sentimentos e actos, esta supressão nunca fica só naquele sector onde mexemos, mas alastra-se para outros territórios à volta e, tornando-nos incapazes de inteligir uma determinada coisa, tornamo-nos incapazes para inteligir muitas outras também.
A defesa contra verdades incómodas transforma-se também numa defesa contra a verdade em geral, contra todas as verdades.
Mais tarde, quando desejarmos estudar um determinado assunto que nos interessa, ou entender o que está se passando na nossa vida, e não conseguirmos, dificilmente perceberemos que fomos nós mesmos que causamos esta lesão da inteligência.
Noto, hoje, em muitos dos chamados intelectuais, uma repugnância, uma defesa instintiva contra a verdade, a tal ponto que, mesmo quando a desejam, têm de a meter num invólucro de mentiras. O pior, nisso, é que com frequência essa lesão é compensada por um desenvolvimento hipertrófico das faculdades auxiliares da inteligência, numa inútil excrescência ornamental.
Muitas destas inteligências lesadas alcançam sucesso nas profissões académicas, empresariais e políticas."
Olavo de
Carvalho
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