O Estado moderno democrático e igualitário é mais uma aparência do que uma realidade. A sociedade moderna, como todas as anteriores, tem as mesmas duas castas governantes — a sacerdotal e a aristocrática: autoridade espiritual e poder temporal — que existirão onde quer que seres humanos se aglomerem numa colectividade maior do que uma família; e que existirão ora de maneira explícita, consagrada na constituição política nominal, ora de maneira implícita, invisivelmente entretecidas na grelha de uma constituição que não reconhece a sua existência mas que não as  pode impedir de representar a verdadeira distribuição do poder; castas que subsistirão como um código secreto no fundo de todas as constituições políticas, sejam democráticas ou oligárquicas, monárquicas ou republicanas, liberais ou socialistas, porque estão imbricadas na constituição ontológica e até mesmo biológica do ser humano e são compatíveis, funcionalmente, com qualquer organização nominal do poder político. Elas são uma “constante do espírito humano”, que nenhuma constituição, lei ou decreto, ainda que fundado na vontade da maioria, pode revogar.

 

No sentido em que aqui emprego os termos, adaptados à situação moderna, “Casta sacerdotal” significa simplesmente os encarregados de guiar espiritualmente o povo — uma categoria que abrange desde sacerdotes e altos dignitários de sociedades secretas até aos ideólogos de largo escopo, aos académicos, cientistas e técnicos e à arraia-miúda intelectual das universidades, do movimento editorial e da imprensa, ou seja uma elite denominada por muitos de  intelligentzia.

“Casta aristocrática” significa todos os que exercem o poder político militar ou têm condições de o reivindicar: isto vai desde os governantes até os políticos da oposição, passando pelos escalões superiores do funcionalismo público, pelas lideranças sindicais e por aquela parcela do empresariado capitalista urbano ou rural que tenha força suficiente para fazer lobby. Há evidentemente intersecções, que não apagam a linha divisória essencial. 

Abaixo dessas duas castas, há os empresários sem força política directa, qualquer que seja o seu tamanho (o que vai desde o grande empresário politicamente isolado até os pequenos comerciantes e proprietários rurais, bem como toda a parcela da classe média que se ocupe somente da vida civil, sem interferir diretamente em política).

 E mais a baixo ainda a imensa massa dos braçais, que vai desde o proletariado politicamente “alienado” até os párias e desclassificados de toda ordem desde que não exerçam poder político através de movimentos sociais ou do banditismo organizado (pois neste caso fazem parte da casta aristocrática).

Esta classificação baseia-se na distribuição real do poder, e não em meras abstracções económicas; e, sem se deixar iludir por aparências e formalismos, entende que a mais alta forma de poder é aquela que governa as mentes dos homens logo, o da casta sacerdotal, que gera a aristocracia e, elevando-a ao poder político, depois a julga e eventualmente condena, derrubando-a com o auxílio das castas inferiores; só a casta que detém o poder espiritual pode legitimar o status quo ou mudá-lo, seja pacificamente ou pela violência.

Definir o poder exclusivamente por critérios económicos e políticos foi um truque sujo da intelligentzia para ocultar seu próprio poder.

 

Foi por isso mesmo que a sociedade democrática, professando mentirosamente igualizar a distribuição de poder, teve de elitizar-se a um ponto que seria inimaginável para os nossos antepassados. Pois uma coisa é ideologia igualitária, outra coisa é sociedade igualitária. Que essa ideologia se pudesse transformar no instrumento da mais formidável concentração de poder nas mãos de uns poucos, é menos uma ironia da História do que uma fatalidade inerente à natureza do poder: não podendo eliminar as castas governantes, a democracia ocultou-as, aumentando assim o seu poder. E quando elas ressurgem sob nomes como “burocracia estatal” e intelligentzia, ninguém as reconhece, pois todos crêem que castas só existem na Índia ou no passado medieval. 

Os nossos contemporâneos, imbuídos de ilusão igualitária, crêem que o mundo caminha para o nivelamento dos direitos, sem perceberem que esse objectivo só pode ser realizado por uma formidável concentração de poder. Essa ilusão torna-os cegos para as realidades mais patentes, entre as quais a da elitização, sem precedentes, dos meios de poder.

O imaginário moderno concebe, por exemplo, o senhor feudal como a epítome do poder pessoal discricionário, e não se dá conta de que o senhor feudal estava limitado por toda sorte de laços e compromissos de lealdade mútua com seus servos, e que ademais não tinha outros meios de violência senão uns quantos cavaleiros armados de espada, lança, arco e flecha, não muito diferentes das sacholas, forquilhas, porretes e fundas da multidão dos seus súbditos; homem entre homens, era visto por todos no campo e na aldeia, caminhava ou cavalgava ao lado de seu servo, e podia portanto, em caso de grave ofensa, ser atingido, inerme, nas campinas imensas, por uma lâmina vingadora, pela foice de um camponês ou por uma faca de cozinha.

Em comparação com ele, o homem poderoso de hoje está colocado a uma tal distância dos seus dominados, que sua posição mais se assemelha à de um deus ante os mortais. Em primeiro lugar, os poderosos estão isolados de nós geograficamente: moram em condomínios fechados, cercados de portões electrónicos, alarmes, guardas armados, matilhas de cães ferozes; são-nos completamente inacessíveis. Em segundo lugar, o seu tempo vale dinheiro, mais dinheiro do que nós temos; falar com um deles é uma aventura que demanda a travessia de barreiras burocráticas sem fim, meses de espera e a possibilidade de sermos recebidos por um assessor dotado de desculpas infalíveis. Em terceiro, os ocupantes nominais dos altos cargos nem sempre são os verdadeiros detentores do poder: há fortunas ocultas, potestades ocultas, causas ocultas, e os nossos pedidos, as nossas imprecações e mesmo os nossos tiros arriscam-se acertar num testa-de-ferro inócuo, deixando a salvo o verdadeiro destinatário que desconhecemos. Perdemo-nos na trama demasiado complicada das hierarquias sociais modernas, e temos razões para invejar o servo-da-gleba, que ao menos tinha o direito de saber quem mandava nele.

Após dois séculos de democracia, igualitarismo, direitos humanos, Estado assistencial, socialismo e progressismo, eis a parte que nos cabe: os poderosos pairam acima de nós na nuvem áurea de uma inatingibilidade divina.

Olavo de Carvalho, O Jardim das Aflições

 

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